Bob Tostes

Um retorno à terra mágica de Pessoa

Adaptações de obras consagradas encontram, de início, uma dificuldade: a memória individual ou coletiva que guardou delas valores intrínsecos transformando-as em patrimônio da arte em geral. O grande maestro Guerra Peixe foi vítima de uma dessas armadilhas ao conferir tratamento sinfônico a conhecidas canções de Antonio Carlos Jobim. Na trajetória do álbum que o levou a um resultado grandioso e impactante, perdeu-se a leveza da música de Tom e com isso seu encantamento.

No início dos anos 2000, os mineiros Renato Motha e Patricia Lobato lançaram-se numa dessas aventuras, ao mergulharem na obra do poeta português Fernando Pessoa buscando inspiração para um novo disco. Semanas, meses, anos... Os trabalhos da dupla são criados sem a pressão do tempo, o que os levou a encontrar nas palavras de Pessoa e seus heterônimos material para um disco duplo: um de sambas, outro de canções. Assim, em 2004 lançaram "Dois em Pessoa", recebido como curiosidade logo transformada em aclamação da crítica. Sobre ele, Nelson Motta escreveu: "... Surpresa! Poema musicado dá sempre errado...porque foi feito para ser lido e não cantado, então fica sempre meio forçado...Não no caso desse excelente CD em que os mineiros Renato Motha e Patricia Lobato transformaram em sambas e canções alguns maravilhosos poemas de Fernando Pessoa". O mais curioso é que o trabalho tornou-se best seller no Japão. Prova disso é que veio de lá o primeiro e cauteloso convite: Haveria possibilidade de um "Dois em Pessoa - Vol.II"?

O produtor Yoshihiro Narita é admirador do trabalho de Renato e Patricia desde 2004, quando ouviu "Dois em Pessoa" e entrou em contato com a dupla para lançá-lo no mercado japonês. Yoshihiro, um produtor independente que vê a música como uma possibilidade de ajudar o mundo a ser mais pacífico e feliz, acabou se tornando um grande amigo do casal, e a parceria continuou em oito cds e três tournées de norte a sul do Japão.

Ao ouvir a pergunta de Yoshihiro Narita, Renato Motha acionou sua "Caixa de Sonhos" (*), alimentada secretamente para retornar à terra mágica de Pessoa. Ao ouvir as canções de "Dois em Pessoa - Vol.II" revivi toda a emoção que senti ao conhecer a música de Renato Motha, herdeiro digno da melhor música brasileira que nos acostumamos a chamar de MPB, publicamente avalizado por nomes como Johnny Alf, Cesar Camargo Mariano e Guinga. No novo trabalho, Motha reitera o letrista em Fernando Pessoa com respeito e conhecimento, revelando a música que existe naqueles versos e o ritmo que se ajusta num samba com inesperada naturalidade. E um pensamento inevitável surge em cada ouvinte: é como se música e letra tivessem nascido juntas.

Compositores não são cantores. A música popular ensinou-nos a entender essa diferença e a admirar a verdade nas interpretações dos autores. Deus foi generoso com alguns - Milton Nascimento e Djavan, por exemplo, fazendo deles os grandes intérpretes de suas canções. A eles reuniu Renato Motha, cuja voz carregada de beleza e sentimento eleva o intérprete ao mesmo nível do compositor. Ele reassume este papel com redobrada eficiência e a delicadeza que marca seu jeito de ser e de viver. Sua inspiração nasceu na nossa música, fortaleceu-se com sua própria personalidade e, ao longo do tempo, a maturidade retocou. Um grande e inesperado presente, porém, nos é dado por Patricia Lobato, parceira de Renato na carreira e na vida, que vem se confirmando a cada novo trabalho como uma das mais belas vozes da música brasileira. Tecnicamente impecáveis, utilizam suas qualidades vocais em benefício do equilíbrio, tornando-se instrumentos perfeitos para o material que compõem. Se o projeto original mostrava-se desafiador em sua origem, "Dois em Pessoa vol.II" não só mantém a qualidade, como a supera em alguns aspectos, fruto da dedicação e vivência musical do casal. Em canções densas ou reflexivas, nos sambas divertidos ou intimistas, os arranjos de Renato extraem o máximo do mínimo, em harmonia com a música criada para os poemas de Fernando Pessoa.

O disco foi gravado em Casa Branca, lugarejo situado nos arredores de Belo Horizonte, na casa de Renato Motha e Patricia Lobato, exceto o elegante piano do paulista Tiago Costa (**) e o violão do santista Bruno Conde, na faixa "Vento que passa".

(*) "Caixa de Sonhos", canção que abre o primeiro disco de Renato Motha ("Brasileiro", de 1992).

(**) Tiago Costa se integra aos discos da dupla desde 2008, depois de ter escrito o arranjo para "Menina da lua", de Motha, gravada por Maria Rita em seu disco de estreia.

Bob Tostes
cantor, compositor e radialista