CAEIRO 

álbum triplo
Renato Motha e Patricia Lobato

A parceria de Renato Motha e Patricia Lobato com Fernando Pessoa vive um novo capítulo com o lançamento do álbum triplo CAEIRO, lançado simultaneamente no final de 2022 nas plataformas de streaming, em três álbuns que contemplam a obra de Alberto Caeiro, o poeta da natureza, um dos principais heterônimos pessoanos, e reverenciado pelo próprio Pessoa como seu mestre.

Essa bem sucedida parceria do duo mineiro com o genial poeta português já rendeu dois álbuns duplos: "Dois em Pessoa - volumes I e II lançados respectivamente em 2004 e 2017, ambos trazendo um disco de sambas e outro de canções que encantaram especialmente ao público nipônico, figurando no Japão entre os mais aclamados álbuns brasileiros e selecionados em listas de melhores do ano.

​Caeiro é como um oráculo que traz em três álbuns quarenta pílulas de pura sabedoria, folheadas por uma música calma, em que ​os sons, ​a palavra e o silêncio coabitam harmoniosamente o mesmo espaço; são canções, sambas e baladas de curta duração, uma revelação poética sempre atual, uma eterna novidade, para momentos de ​contemplação​ e ​​quietude. Além de acentuar o ritmo e a emoção dos poemas, as melodias e harmonias criam uma ambiência que realça a força, a beleza e o sentido dos versos do poeta. O canto de Renato e Patricia acompanhado por um violão dão o tom intimista e acolhedor ao trabalho.  

O projeto gráfico das capas traz pinturas de Leonora Weissmann. 



ALBERTO CAEIRO, O POETA DAS SENSAÇÕES

MANTOVANNI COLARES 

Fernando António Nogueira Pessoa, naquela Lisboa do final do século XIX e início do século XX, se dava a escrever versos, de pé, em frente ao móvel escuro que deveria em princípio servir de cômoda, mas findou transformado em escrivaninha. A altura da parte larga e plana acolhia os papéis empilhados, vazios, à espera da tinta guiada pela mão do poeta; em seguida, concluído o poema, seu destino inevitável seria o de ser jogado na arca ao lado, sempre aberta, na qual já abrigava em suas entranhas inúmeros escritos, ali jogados sistematicamente. Pois essa era a rotina daquele senhor, dia após dia. Ninguém sabia, contudo, que os poemas eram escritos desde cedo. Ele se arrumava impecavelmente e saía às ruas da cidade, construindo histórias a partir do seu pensar, e o fato de quase nada enxergar ajudava a ter esse deslocamento do mundo real enquanto caminhava. A miopia lhe veio forte, para não usar óculos incômodos, pesados, grossos, a destoar de sua elegância, preferia lentes bem abaixo da correção necessária, assim o adorno se mostrava mais leve, concedendo-lhe a visão mínima para evitar vexames de topadas ou quedas em público.

Nesse flanar diário pelas ruas lisboetas, abstraído do mundo da visão perfeita e enquadrada, uma certa névoa no pensar permitia que os versos fossem mastigados e digeridos em sua cabeça inquieta, até que, ao retornar à casa no início da noite, aproveitava o período insone para verter ao papel versos seus e de outros. Como assim "de outros"? É preciso explicar aos que não sabem que Fernando era uma multidão numa só pessoa. Desde menino deu-lhe na cabeça a vontade de criar personagens, e quando adulto isso se tornou mais complexo. Não era simplesmente fazer poemas com outros nomes, isso geraria pseudônimos. Eram "ficções literárias", como diz Jerónimo Pizzaro, um dos maiores estudiosos de Fernando Pessoa. Essas criaturas possuíam data de nascimento, além de características muito particulares e sentimentos próprios, uma vida autônoma enfim. Por isso foram chamadas pelo próprio poeta de "heterônimos". Foram centenas deles, mas praticamente três formaram - juntamente com o próprio Pessoa - uma espécie de irmandade perene: Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Alberto Caeiro.

Em carta datada de 13 de janeiro de 1935, dirigida a seu amigo Adolfo de Casais Monteiro, Fernando Pessoa revela que "(...) em 8 de Março de 1914 - acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre".

Alberto Caeiro, após aquele dia triunfal, passa a ser o mestre de todos os heterônimos, até mesmo do próprio Fernando Pessoa. Essa sobreposição hierárquica se dá pelo fato de que Caeiro consegue algo praticamente impossível no plano da existência: a plenitude da compreensão da natureza, sem ter a pretensão humana de interpretar os sinais do mundo ou interferir em sua essência. "Sejamos simples e calmos / Como os regatos e as árvores"; nesses versos Caeiro se anuncia como poeta da natureza. Penso, todavia, que Alberto Caeiro vai além dessa perspectiva; na verdade, ele me parece ser o poeta das sensações. Caeiro sente, isso lhe basta. Nada de reflexões, de querer amoldar as coisas ao olhar do humano. Só sentir. Ao sentir ele escreve poemas, os pensamentos andam soltos tal rebanho pelas pastagens; em determinado momento é preciso juntar esse rebanho.

Em cima do outeiro, um pequeno morro, ele vê tudo do alto, por isso consegue ampliar suas sensações e realizar os sentidos. Olha a paisagem (visão), colhe flores (tato), aspira o magnífico odor da natureza (olfato), é capaz de perceber o gosto de todas as primaveras nas gotas de chuva que acariciam sua boca (gustação).

Nesse momento eu pergunto: Caeiro nos mostra esses quatro sentidos, visão, tato, olfato, gustação... mas... onde estaria o quinto sentido, o da audição? Não pode ser o vento, ele somente gera a brisa silenciosa no corpo que faz valer a pena viver só em senti-lo, o poeta assim confessou. É preciso um som que complemente essa característica do poeta das sensações, algo que se agregue a todos os demais sentidos, dando a plena interação da paz da natureza por ele anunciada.

O quinto sentido tardou a chegar, mas veio, e da forma mais inesperada e mágica. Ele surge das entranhas de uma terra deslumbrante, formada por montanhas, rios e de uma natureza única. Veio de um lugar que certamente Caeiro nunca ouviu falar em sua lírica existência, talvez nem mesmo seu poeta criador, o Pessoa, de tão distante que se mostrava esse amplo sítio da natureza.

O quinto sentido se anuncia por cantos e encantos das Minas Gerais. Ele surge pelo talento de Renato Motha e Patricia Lobato. Com as mentes, mãos e vozes de Renato e Patricia, as sensações do poema de Alberto Caeiro passam a ser conduzidas pela música. Ao musicar seus poemas, a audição finalmente integra o pleno sentir do qual Caeiro tanto buscava.

A dificuldade de musicar poemas de Alberto Caeiro não decorre somente do fato de se ter versos sem métricas ou rimas, mas sobretudo em vestir as palavras tão prenhes de elementos naturais com harmonia e melodia adequadas.

No dia triunfal, Fernando Pessoa revelaria por seu heterônimo Caeiro "trinta e tantos poemas"; pois foi justamente quase um século depois, na revelação musical por parte de Renato e Patricia, que passamos a ter 40 músicas equilibradamente distribuídas em três discos, o volume 1 com 13 músicas, o volume 2 igualmente com 13 músicas, e o volume 3 composto de 14 músicas.

É preciso ouvir cada uma dessas faixas musicais como quem percorre a natureza, olhando por cima de um outeiro todos os elementos a nos pedir, por favor, não pense, não queira interpretar nada, simplesmente sinta, como quem sente o vento e a flor.

Fechem os olhos, a doce voz de Patricia e o sonoro canto de Renato, em conjunto, hão de segurar a mão de vocês e conduzir pelos caminhos vistos e sonhados por Alberto Caeiro.

Tenho uma leve impressão, por um verso que não me escapou, que Caeiro gostaria de trilhar um caminho musical por seus poemas, pois ele fala num "ruído de chocalhos / Para além da curva da estrada"; esses chocalhos são do rebanho, o rebanho é o pensamento dele, pensamento não entoa som, então só pode ser a música desejada.

Voltemos à curiosidade de Fernando Pessoa que reduziu o grau de seus óculos para as lentes grossas não atrapalhar sua elegância. Assim ele viveu por toda a vida. Contudo, à beira do último suspiro, consta que suas palavras finais foram "dá-me óculos!", tamanha era sua vontade de enxergar formas e cores como merecem ser vistas.

Pois bem, se a arte permite devaneios, fico a imaginar o momento em que o heterônimo Alberto Caeiro abandona sua vida, ainda que imaginária. Prestes a enfrentar o último momento neste mundo, ele teria dito aos que estavam ao seu redor, naquele derradeiro instante: "falem baixo, quero ouvir meus versos musicados, que me chegaram em sonho, pelos ventos distantes das Minas Gerais!".

MANTOVANNI COLARES 
é Doutor em Direito pela PUC-SP, professor de Direito Processual da Universidade Federal do Ceará, Juiz de Direito e escritor. Considera Fernando Pessoa o seu poeta da vida inteira. Possui um instagram com postagens dedicadas a três gigantes da língua portuguesa, Fernando Pessoa, José Saramago e Chico Buarque (@mantovannicolares)

RepertórioÁlbum triplo CAEIRO
Renato Motha e Patricia Lobato


CAEIRO - vol.1

1. Sejamos simples e calmos
2. Passo, fico
3. Trovoada
4. Simplesmente vejo
5. A borboleta e a flor
6. Qualquer coisa natural
7. Oxalá
8. Aceito
9. Me desembrulhando
10. Tudo quanto existe
11. Acordarei
12. Refletido
13. Bolhas de água

CAEIRO - vol.2

1. Sou do tamanho do que vejo
2. Quando abri a janela
3. Argonauta
4. Meu último dia
5. Estar ao sol
6. Espantosa realidade
7. Inocência
8. Simplicidade de alma
9. Eterna novidade
10. Vi como um danado
11. Pouco me importa
12. Bendito seja
13. Aqui jaz

CAEIRO - vol.3

1. Da mais alta janela
2. Quem me dera
3. Para além da curva da estrada
4. A última estrela
5. O que é
6. Comum divindade
7. Recorte de mim
8. Um canto na noite
9. O luar através dos altos ramos
10. Manhã
11. Jardins regulares
12. Verdecer
13. O essencial
14. No fim

Todas as músicas são de autoria de Renato Motha, sendo "O essencial" e "No fim" (faixas 13 e 14 do vol. 3), em parceria com Patricia Lobato sobre poemas Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa.

O único poema que é de Fernando Pessoa por ele mesmo (ortônimo), é "Um canto na noite" (faixa 8 do vol.3)

Ficha técnica -  CAEIRO 1, 2 e 3

Renato Mothavoz, violão e arranjos
Patricia Lobatovoz

O ábum triplo CAEIRO foi gravado, mixado, masterizado e produzido em 2022 por Renato Motha no Estúdio Pritpal em Casa Branca - Brumadinho - MG, Brasil.

O projeto gráfico das capas traz pinturas de Leonora Weissmann.