ALEXANDRE CASTRO

A polifonia da palavra

A riqueza e a diversidade do cancioneiro popular do Brasil sempre suscitou questões pertinentes à relação entre música e palavra, que caracteriza o gênero denominado "canção": em que medida uma letra de música pode ser chamada de poesia? Ou ainda: todo e qualquer poema pode ser cantado se um músico redesenhá-lo melodicamente?

Sabe-se que poesia e letra de música são apropriações diferentes de um mesmo material, tanto em sua forma quanto em seu conteúdo. Não se trata de uma diferença valorativa, pois, esteticamente, ambas podem possuir um alto grau de beleza. O fato é que ao associarmos a palavra poética ao ritmo e à melodia da música, seu conteúdo passa a ser lido/ouvido/fruído numa outra dimensão mais fragmentária e intuitiva. A harmonia, a melodia e o ritmo musicais absorvem a forma e redimensionam a significação das palavras, criando um "terceiro" texto.

A releitura musical dos poemas de Fernando Pessoa por Renato Motha tem sido um trabalho feliz e exaustivo de adaptação dessas nuances entre palavra e música. Desde o seu trabalho "Dois em Pessoa", em parceria com a cantora Patrícia Lobato, o compositor tem buscado se apropriar da obra do poeta português e transportá-la para a cadência de sambas e canções, sempre preocupado em conciliar as tensões inerentes a essas duas linguagens. O resultado, que agradou a críticos literários e musicais, em 2004, se repete agora, 13 anos depois, com o "Dois em Pessoa 2".

O que se vê nesse trabalho é a apropriação de cenas, imagens e ideias presentes na obra de Pessoa que funcionam como centelhas musicais, desenvolvidas com liberdade e respeito simultâneos. A liberdade consiste na fragmentação da obra, na seleção e na mescla de trechos dos poemas, na supressão ou no acréscimo de palavras de acordo com as exigências da prosódia musical. O respeito se traduz na manutenção da temática e das imagens que caracterizam a múltipla obra do poeta português, sempre reiterando as marcas de seus heterônimos.

É o que acontece, por exemplo, na canção "O meu olhar azul":

O meu olhar azul como o céu
É calmo como a água ao sol.
É assim, azul e calmo,
Porque tudo é como é
E eu aceito, e nem agradeço,
Para não parecer que penso nisso...
Quer pouco: terás tudo
Quer nada: serás livre
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

O texto, na verdade, é a mescla de três fragmentos da obra pessoana, de autoria de dois heterônimos distintos. A primeira estrofe compõe o conjunto de poemas "O guardador de rebanhos", de Alberto Caeiro, o poeta-pastor, admirado e invejado pelos demais heterônimos por sua liberdade de não pensar. A segunda e a terceira estrofes pertencem a dois poemas distintos do cancioneiro de Ricardo Reis, o mais "clássico" dos autores criados por Pessoa. Note-se que a progressão das ideias e a ambiência temática estão em absoluta consonância com os conceitos de abnegação, desapego e simplicidade que perpassam as obras dos dois heterônimos. Quem ouve a canção, vê-se diante de uma obra coesa, de um conjunto uno e coerente, palavra, melodia, ritmo e harmonia resultando nessa "terceira margem" da criação.

O resultado final dessa bricolagem construída por Renato Motha em "O meu olhar azul" é uma rica amostra do trabalho realizado com outros tantos fragmentos da obra de Fernando Pessoa presentes nesse novo álbum. Resultado da pesquisa apurada de Renato em parceria com Patrícia Lobato - uma leitora cuidadosa e atenta às passagens mais apropriadas à adaptação musical -, "Dois em Pessoa 2" é um convite musical tanto àqueles que já conhecem, quanto - principalmente - aos que ainda não ingressaram no universo múltiplo da obra de Fernando Pessoa.

Ouso dizer que em "Dois em Pessoa 2" Renato Motha e Patricia Lobato deram à luz um novo heterônimo de Pessoa, afeito aos acordes do violão e às melodias inspiradas na natureza brasileira. Uma bela mistura.

Alexandre Castro
Professor de literatura e músico